Comprimidos

Leia a bula.

Ao persistirem os sintomas, procure um médico que saiba responder algo além de "deve ser amor".
Que coisa doentia.

domingo, maio 08, 2011

Parabéns por ontem, por hoje e provavelmente por amanhã.

Parecia ter sido ontem a primeira vez que a vizinha da casa ao lado armara um escândalo, convidando toda a rua pra desventura da filha arteira da Dona Rosa. Correr e sair tocando campainhas como se os dedos fossem cair: meu hobby. Eu não era fácil. Menininha diferente, esquisita, invocada. Sem afeições materiais, isso é um fato. Nunca quis aqueles tênis de luzinhas patéticos, febre no colegial. O que eu queria era liberdade. E reclamava por não poder fazer o que queria, sair pra onde fosse sem hora nem motivo pra voltar.
Pouco chorava. A tristeza era engolida feito uma bola de boliche, inflava a goela mas não se transformava em água, sal, gordura, proteína e memórias. Sistema lacrimal obediente.
Na escola era um caos. Passava os recreios jogando cartas com os meninos. Ganhando, é claro. Tazos, chapinhas, baralho, peões, pebolim, sorrisos e sonhos. Poucas bonecas, o que me fez ser um pouco menos humanizada do que deveria, talvez. Crianças que nascem com carrinhos tendem a crescer e virar engenheiros. Gente que brinca de boneco acaba terapeuta. Ou o contrário, criança não sabe de nada além do sabor preferido de sorvete. Não há limites quando se tem menos de quinze. Quem sabe doze. Há crueldade, isso sim. Gordinhas que viram mamíferos gigantescos. Nerds que jamais terão namoradas. Ruivos que, ah!, seus esquisitos, apaguem o fogo disso aí.
Mas então passou. Guardei na parte de cima do armário todas as cartas de Pokémon. Não tinha mais tanta graça. Era careta, mico. Escondi o primeiro beijo. Talvez até hoje ela nem saiba.
Ouvia de todos os professores que meu problema era ser demais. Isso mesmo, demais. Falar demais, imaginar demais, perturbar demais. Tudo isso em menos de metro e meio.
Olhava para o relógio da parede e contava os anos como se fossem minutos do recreio. Ligeiros e divertidos. Responsabilidades chegando. Cobranças, obrigações, limitações. Aonde está aquela menininha de bermuda tactel que corria destrambelhada sem se importar com o amanhã?
Cresceu. Criou-se.
Ou melhor, foi criada.
Pelas melhores e mais sinceras mãos que o mundo já viu. Por uma mulher que renunciou os próprios sonhos e felicidade em prol de um sorriso que nem ao menos era seu. Por alguém capaz de ler meus olhos como quem lê um texto de Clarice Lispector. Com profundidade. Por alguém que aceitou, sem temer e com orgulho, a responsabilidade de deixar para trás uma parte de si. Alguém capaz de conseguir fazer o impossível parecer mais fácil que brigadeiro de panela. Que acordava na madrugada e corria ao meu quarto pra saber se estava tudo bem. Minha vulnerabilidade só existia quando longe dela. Parecia temer o famigerado bicho-papão. Aquele que ela trouxe da maternidade e a grande maioria das pessoas chama de "amor incondicional". E esse é, de fato, um sentimento monstruoso.

3 comentários:

Julia disse...

Minha mãe com certeza morreu de inveja agora.

Cacá Motta disse...

Oi, você já segue o blog do Guilherme Sakuma - e ele também segue o seu. Agora ele está colaborando no meu (blog); é bem legal também, tem algumas histórias cabeludas e tal, rs.

Estou te seguindo, se puder, me segue por lá também!

Beijo *

Victor da Côrte disse...

Muito lindo o texto. Tocante demais, parabéns.