Comprimidos

Leia a bula.

Ao persistirem os sintomas, procure um médico que saiba responder algo além de "deve ser amor".
Que coisa doentia.

quinta-feira, março 03, 2011

Como é liberdade, vou ter que requentar o teu café?

Para Mateus, por tudo e mais um pouco.

11 de novembro de 1998.
“Antes, e não tão distante desse momento infeliz que chamo de agora, eu tinha tudo que precisava e estava muito bem com isso, obrigada. Mas nessa vida não existe garantia nenhuma de que o que diz ser seu, de fato o é. Principalmente se tratando de pessoas. I mean, eu nunca gostei de ser de alguém. Além de vulgar, soa imbecil. Tratar as pessoas como artefatos me remete a possível idéia de que eu me apaixonaria por abajures. E, com todo respeito à sua função luminosa, eles não são nada atraentes.
Mas esquecendo o conceito de objetofilia, eu estava bem, entende? Bem mesmo. Quem sabe até demais. Talvez não merecesse aquilo tudo, mas com certeza não mereço isso. Eu não perdi conforto, dinheiro ou namorado. Eu perdi a minha liberdade e essa era a única coisa que eu fazia questão de manter.
É óbvio que, com isso, todo o restante escorreu das minhas mãos. Não existe conforto em dormir num colchão de pedra ou ser ameaçada diariamente pelas outras presidiárias. Não existe dinheiro porque ele nunca existiu mesmo. Senão eu não estaria aqui, certo? E não existe namorado porque os homens são babacas. Ponto.
O problema maior de estar pobre, desarrumada, presa e numa puta abstinência de amor, carinho, sexo e música digna é respirar. Muitas vezes eu evito fazê-lo. Isso aqui fede. Argh. Minha companheira de cela é a ultima criatura que eu chamaria de companheira. Gorda e com essa cara eternamente amarrotada, me obriga a ficar trancada no banheiro de meio centímetro quadrado quando surta de fome. Então ela dá porrada na guarda e fica mais dois dias sem direito à almoçar, o que a faz socar a pobre mulherzinha de azul no dia seguinte, mais uma vez. Loop eterno. Idiota.
Toda noite fico relembrando o motivo que me faz estar aqui – e provavelmente permanecer por mais alguns anos seculares – enquanto descasco a parede com as unhas e fico puta por existir um teto abarrotado de fungos sobre a minha cabeça.
Ele tinha terminado comigo. Sinceramente? Grande merda. Nem valia tanto a pena assim, mas eu odeio ser dispensada. Queria ser vidente pra intuir sobre quando teria minha bunda e ego chutados e, então, poder me livrar do boçal antes disso. Mas minha aura cósmica não é suficientemente aguçada. Nem minha imaginação, tão logo eu não acredito em nada disso. Búzios são ostras, e ostras não são animaizinhos confiáveis. Elas sofrem por pérolas. Mercenárias.
É, ele tinha terminado comigo. E falou tanta coisa que me fez tontear e duvidar da minha própria competência como pessoa. Disse que talvez tivesse chance de volta, mas que por enquanto era melhor assim. Balela. Babaca. Dizia como se fosse muito mais do que um rostinho bonito. E corpo. E braços. E whatta man. Mas não ligo. Agora não. Antes liguei. Na hora eu me importei.
Demais.
Pobre padeiro.
Fui caminhar pra tentar esquecer o sacana. Não que eu realmente pensasse ser possível ignorar toda aquela baboseira em três ou quatro quarteirões, mas pelo menos me livrei dos olhares curiosos dos vizinhos. Porque, é claro, ele não fez isso sem criar um bom escândalo. Depois mulher que gosta de zona.
Parei na confeitaria e pedi um café expresso. Máquina com problemas. Quero café. Qualquer um meu senhor, anda logo. Com açúcar. Aliás, com diabetes, vamos apressar essa porra. E me dá uma rosquinha. Ou melhor, nada de rosquinhas. Me dá um pão de sal. E um sonho.
- Desculpa minha filha, mas o sonho acabou.
Pronto. Eu sempre fui muito ligada em palavras e aquelas acarretaram uma reação que nem eu entendi. Só sei que segundos depois eu estava com a faca do pão atravessando parte da jugular do pobre homem. Impulsos. Os pulsos. Os cortei logo depois, ainda existem as marcas. Não que eu precisasse delas pra lembrar do instante em que perdi a minha liberdade.
Não existe nada que me faça lembrar mais disso do que esse cheiro podre de gente sem alma. Não, eu não sou uma delas. A minha alma eu ainda tenho. Choro e oro todo dia por aquele senhor de boina e mãos lotadas de farinha. Uma pena. Uma enorme pena de quatro anos.
Quatro anos de macarrão em formato de rocha. Quatro anos de micro banheiro. Quatro anos de tapinhas na bunda de mulheres mais toscas que eu. Anos. Quantos anos ele tinha? Quantos anos eu ainda tenho?
Cansei.
Mais nenhum. Não quero mais nenhum ano. Nenhum segundo. To saindo. To correndo. Achei. É aqui. Pronto. Adeus. Desculpa aí, Seu Padeiro. Se a gente se encontrar eu te dou um abraço e elogio suas rosquinhas. Naquele dia eu realmente não as queria, mas talvez fosse melhor.”

12 de novembro de 1998 - Manchete do jornal local: Presidiária invade cela que supostamente seria de segurança máxima e é morta cruelmente pelas outras detentas.

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