Del mondo, Drummond.Nunca fui um personagem dotado de boas memórias
E o fado se propõe a me infernizar.
Se a criatividade existe, me falta papel
E se o látex surge, por pena de mim,
É o tinteiro que seca e impede a consumação.
Cruel é o destino de um jornalista que, por falta de sorte,
Não propaga seu dom pela falta do que dizer.
Mais ardido é o daquele que tem a noticia,
Mas nada na mão para fazê-la acontecer.
(Desconfio que escrevi um poema...**)
Melhor acabá-lo logo antes que o cosmos me pegue e leve embora esse rasgo de papel com tudo que sobrou de mim.
-----Redator sem redenção.Ninguém me vê através das letras estampadas no segundo caderno.
Desde que eu leve o choque, a risada ou a pura informação, não há mais nada para saber.
O senhor da praça não percebe que está a me ouvir
E não duvida da minha voz.
Mas só não o faz porque não se lembra de mim.
Porque seus oclinhos meia-lua não me enxergam. Mas eu os vejo.
Vejo o mundo e transcrevo.
Eu, como se fosse a mão que dita o dia-a-dia, não sossego nessa falta de reconhecimento.
Por mais que eu tente, não saio dessa capa invisível que se mantem contente nas letras miúdas do fim da página.
Caracteres semelhantes à minha carta de identificação mas que, de fato, não significam nada.
Porque não sabem que eu sou eu. Porque não duvidam de mim por não saberem que 'mim' existe.
Minha humanidade é subestimada, passo a ser apenas porta-voz de tudo.
E, mesmo assim, sou mudo na mente de vós.
Não cheiro a tinta, minha pele inflama e exala verdade.
E o mundo conspira pra calar minha existência, mesmo que precise de mim pra se fazer existir.
Afinal, sem mim o mundo seria mundos.
Vários, individuais, que se chocam e não atravessam uns aos outros.
Patético o quanto precisam de mim pra mostrar que são um só e, mesmo assim, não me percebem.
Quem sabe um dia eu me esqueça de avisá-los da programação cotidiana
E aí verão com quantos toques datilográficos se faz um jornalista.
E a sua verdade escorre pelas minhas mãos...
-----Selznick que me perdoe.Acordado até o calar da noite,
Eu ando cuidadosamente pela escuridão.
Não há como dormir sabendo que a plenitude chegou à mim. Que finalmente fui capaz.
As anotações que carrego comigo contém informações que qualquer um cobiçaria.
É de surpreender que até agora eu tenha durado tanto com algo tão valioso.
Vejo, ouço, sinto que a cada esquina algo vai tirá-lo de mim.
Corro intimamente dessa sensação de proteção que evoca o pânico.
É um presente divino, consolo por toda a minha história penosa entre os papéis nebulosos do escritório.
Finalmente, me ponho a dormir, faz tempo que não experimento tal ato com um sorriso no rosto.
E amanhece.
Cabeça baixa, desiludido, fracassado, abatido.
Não vejo porque continuar tentando se tudo termina emoldurado da mesma forma.
Quadro trágico.
O breve momento de felicidade que experimentei ontem
Nada mais foi que uma brincadeira infame do destino.
Francamente, se Deus realmente existe, seu senso de humor é doentio.
Porquê toda soberania é sádica?
O vento que carregou as minhas anotações mal sabia que arrancava um pedaço de mim, a sangue frio.
E com certeza não iria fazer diferença se tivesse se mantido na inexistencia, maldito sopro dos céus.
Mas agora eu assumo esse papel de um qualquer. Uma mera caixa de ossos, sem razão pra seguir, além de um estúpido que esquece de fechar as janelas.
O afortunado ser que as alcançou no ar, se tem qualquer idéia do que está escrito, com certeza terá uma vida contrária a minha.
Tenho a estranha sensação de que “O Vento Levou” não terá mais o prazer de completar minha estante cinematográfica.
___
* Pra quem não entendeu, o título faz referência ao Dois Poemas Acreanos, de Mario de Andrade.
** Parafraseando Drummond, que pretensioso senhor jornalista!
...
Ah sim, e nada contra o Acre, foi só um perdigoto de humor, desculpe-me a nojeira.