Comprimidos

Leia a bula.

Ao persistirem os sintomas, procure um médico que saiba responder algo além de "deve ser amor".
Que coisa doentia.

terça-feira, novembro 02, 2010

Corredor de si.

Na beira da cama, os pés apontavam para o teto. Cabeça funda no travesseiro, a espuma afogando as têmporas. Se não fosse a luz clara que já invadia o quarto, poderia fingir-se de morta e realmente acreditar.
Trrrrr.
Mas que porra é essa?
Maldito seja Graham Bell. Mentira, maldita seja eu que resolvi manter contato com esse (i)mundo.
Trrrrrrrrr.
DDD. Doença, demência e desatino. Quem sabe destino. Tanto faz.
Trrrrrrrrrrrrrrr.
Amaldiçoada ou não, ela se levantou, sem olhar para os lados. Tentava respirar o mínimo possivel para manter o silêncio e não irritar os ouvidos insatisfeitos da noite anterior.
Foram tantas palavras insossas. Sem dó,
sem dor, sem
nada.
Se arrastou até o cômodo seguinte, donde vinha o - TRRRRRRRR - berro mecânico.
Ele parou assim que ela se aproximou.
Se estivesse em seu estado natural teria xingado até a ultima espiral do fio, mas não estava. Realmente não. Nem ali talvez estivesse.
Voltou como se tateasse as farpas do chão de tacos, arrastando a manta que só agora descobrira estar sobre seus ombros.

Foi então que viu. Que se encontrou.
O reflexo estava ali, não podia mais evitar.
Parou em frente ao espelho, no meio do corredor, e então analisou as bolsas escuras sob seus olhos negros. Os dentes amarelados não instigavam mais um sorriso. As curvas disformes espalhavam pela imagem suas imperfeições.
Até ontem nada disso estava ali. Lembrou-se daquela música que selava a própria realidade. "E quando olhei no espelho eu vi meu rosto e já não reconheci."

Ela era a melhor, a maior, a mais bela. A única.
Era dele.
Mas agora só sobrara aquilo. Uma espécie de borra, sem definição. Uma figura comum que, se jogada no meio da multidão, não se destaca.
Talvez só fora esse mesmo seu papel. Um enfeite, um bibelô. Daqueles que se põe na estante mas logo perde a graça, devido ao desgaste da superfície.

Prostrou-se na cama e esperou que a poeira da escuridão chegasse. Cobriu todo o corpo com a manta. Jogou-a então para um canto, com expressão de asco por ela estar tomada daquele perfume barato que infectava o tecido.
Nunca fora religiosa, ainda mais agora que toda a descrença desabara sobre seus miolos, mas rezou pra que dormisse tempo suficiente para jamais ter de rever a própria imagem, que arreganhava a verdade na cara dela.
E lamentou saber porque e por quem tinha medo de se encontrar.

5 comentários:

Gugu Keller disse...

Adorei a intensidade do texto, sobretudo a expressão "arreganhar a verdade"! Nunca a tinha visto... Que lindo!
GK

Luis Felipe de Abreu disse...

pode deixar, sinta-se tirada pra dançar uma valsa, então ;D aviso que teus pés sofrerão também.

e não me assusta. ok, MENINA COM BOLAS soa tenso, mas eu saquei hahaha

Sr. Reticente disse...

Dia difícil esse para ela... Espero que ela tenha acordado com mais disposição, se é que era isso que lhe faltava, no dia seguinte! Se é que ela conseguiu dormir,se é que a oração surtiu algum efeito calmante...

Ótimo meio de semana!

Sunflower disse...

"Acordo" de uma noite insone, porque dentre várias coisas que ocupavam, vagavam e ricocheteavam na minha mente, estava essa situação. Vesti a pele do personagem como se fosse um robe. Porém com um agravante, não era o telefonema que me deixou acordade, mas a falde de um.

beijas

Camila Fraga disse...

Caraaalho, que louco teu blog! Amei!