Comprimidos

Leia a bula.

Ao persistirem os sintomas, procure um médico que saiba responder algo além de "deve ser amor".
Que coisa doentia.

domingo, agosto 29, 2010

Destino: eternamente desconhecido.

Sofia nunca foi como as outras. Não gostava de folhear revistas de moda, não chorava com filmes românticos. Nem ao menos os via. Não suspirava pelos mais bonitos do bairro (nem por nenhum outro), não sorria pra qualquer um. Simpatia extrema não era sua melhor qualidade. Ela era sincera. Seus cadernos eram livres do vírus do coração-em-cada-página. Não havia um rosto que a fizesse ter espasmos apenas ao vê-lo.

Até então.
Só mais um dia comum, rotina claustrofóbica. Estava cansada daquelas pessoas, das mesmas caras passadas a maquiagem importada. Colégio só para meninas, que caos. Línguas afiadas por todos os lados, falatório incessante, fofocas, mentiras. Insuportável. Mas era apenas até o fim do ano. Conseguira convencer sua mãe a colocá-la em algum lugar normal. Fora do inferno, de preferência, obrigada.
Uma quadra antes de chegar à escola (vulgo purgatório), ela desviou. Saiu de sua rota e não sabia porque estava fazendo-o. Apenas foi seguindo seus pés que, de repente, tornaram-se independentes, rebeldes. Mais alguns passos e achou um banco.
Me perdi, professora. Desculpe o atraso de duas eternidades.

Sentou e tentou, pela primeira vez, observar aquele espaço desconhecido. Rostos desconhecidos.
Duas meninas pulando corda, uma senhora abraçando um menino de, no máximo, 6 anos. Desejou sentir o gosto da torta de limão que a avó sempre fazia. Dois anos... Uma lágrima. Droga, nada de chorar, nada de chorar. Patético. Já foi, fim.
Passou os olhos por mais algumas caras que, possivelmente, esqueceria logo depois. Nunca foi boa de memória.
Então o viu. Não estava brincando de ser um ogro como os outros, que corriam de modo animalesco atrás de uma bola. Pelo contrário, esbanjava suavidade enquanto lia freneticamente um livro qualquer. O que ele tinha em mãos era o que menos importava naquela hora. E, mais uma vez, seus pés tomaram vida. E ela não tentou freá-los. Se foram. O encontraram.
Olá, posso me sentar?
Oi, meu nome é... Não importa, ele não vai lembrar disso amanhã.
Opa, livro legal... Que droga de livro é esse?

Nenhuma de suas tentativas de diálogo mental pareciam eficazes. E não precisou inventar mais nenhuma.
- Você. - ele disse.
- Eu?
- Há mais alguem aqui?
Ela queria apontar pra todas as outras, mas percebia os olhos fixos dele.
- Acho que não. - ele se respondeu.
- Eu... eu...
- Eu também.
- Mas...
- Eu sei que não. Mas podemos nos conhecer agora. Prazer, sou seu destino.
E ela, tomada de uma coragem absurda, formulou sua primeira frase coesa.
- Sou quem esperava por você.

Alguns muitos anos se passaram depois daquela manhã. Sofia nunca mais o vira. Não tinha como procurá-lo, nunca soube seu nome, idade, gosto. Segundos depois daquelas declarações ele teve que ir. Não se sabe para aonde. Ela foi incapaz de seguir com os olhos o caminho que ele fizera, estava se afogando em todo aquele sentimento alienígena que a abduzira. Mas, com a experiência e as porradas da vida, limitou-se a classificar tal fato como 'primeiro amor' ou, de modo piegas, 'amor a primeira vista'. A unica memória de sua infância. Impossível não lembrar de algo que nunca esquecera.
Mas agora sua rotina era outra. Recheada de vozes graves, masculinas. Chefes tão insuportáveis quanto garotinhas fúteis ao tatearem uma espinha na ponta do queixo.
Uma vida financeira estável, mas um coração abatido. Nunca tivera nenhum relacionamento que durasse mais que duas mudanças de humor. Inconstância era seu pseudônimo. Muitos casos de uma noite só, nenhuma lembrança. Muitos quartos de móteis, sempre o mesmo cheiro azedo de sexo, o mesmo gosto de farinha na boca. Eca. Nada disso vale a pena.

Suas noites de insônia eram tomadas por flashes daquele momento. Queria descobrir como ele se chamava, se tinha irmãos, o que gostava de ouvir, ler, assistir, comer. Se era real.
Mas lembrou que ele era seu destino. Conceito abstrato. Ideal. Utopia. Sonho. Ilusão.
Mas tanto faz, ele nunca deixaria de ser dela. De fazer parte dessa menininha de trinta e poucos, que espera chegar aos oitenta e nunca deixar de ser essa criatura ácida. Mulher com bolas.

Foram poucos os segundos que sentiu o cheiro fresco daquele por quem esperava. Que observou aquele rosto amassado pelo lençol. Riscos lineares. Desenho impecável. Ah, como seria capaz de trocar todos os seus gozos por um encontro com ele.

Sofia nunca dividiu sua vida entre antes e depois de um grande amor. Porque, antes desse, não estava viva. Seu destino se fez naquele banco, quando chutou sua rotina e se fez protagonista de sua própria história.

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